A situação actual da língua mirandesa e o problema da delimitação histórica

                     Revista de Filologia Românica                                                                                                                                                                      ISSN: 0212-999X

                                 Vol. 18 (2001) 117-136

A situação actual da língua mirandesa e o problema da delimitação histórica

dos dialectos asturo- leoneses em Portugal

Manuela Barros Ferreira

(Ver sobre Bemposta)

Agradeço aos organizadores deste Seminário, e muito especialmente à colega e amiga M.ª Victoria Navas, esta oportunidade de vos falar, em Madrid, sobre a mais pequena língua da Península Ibérica. É a mais pequena porque conta apenas cerca de doze mil falantes [1] e ocupa um território de 500 quilómetros quadrados. No entanto, esta língua, como outra qualquer, é infinita nas suas possibilidades de expressão e nas surpresas que nos reserva.

Passo a desenvolver alguns aspectos da sua delimitação relativamente ao português.

Localização

A língua Mirandesa tem uma localização geográfica bastante precisa no nordeste português. A sua fronteira norte e nascente é nítida, coincidindo com a fronteira política; já a poente o seu traçado é mais indeciso. A norte, a “raia seca” está representada pelas aldeias- limite de San Martino de Angueira, Cicuiro, Custantin e Paradela; a nascente, situa-se a fronteira natural entre Portugal e Espanha constituída pelo rio Douro, ao longo do qual se elevam Aldinuoba, Bal d’Aila, a própria cidade de Miranda, Freixenosa e Picuote. A oeste deste arco, encontram-se Angueira (no concelho de Vimioso), Speciosa, Pruoba e Infainç; Zenízio, Malhadas e Peinha Branca; Bilasseco (novamente no concelho de Vimioso); San Pedro de la Silba, Palancar, Bal de Mira; Fuonte Lhadron, Palaçuolo, Augas Bibas, Dues Eigreijas, Cérceno; Prado Gaton, Fuonte Aldé, Bila Chana de Barciosa; e finalmente, a sul, Sendin.

O centro administrativo deste território, Miranda do Douro, não costuma aparecer na lista de localidades de fala mirandesa porque ali a língua nativa foi submergida pelo português – e até pelo espanhol, nos contactos com os numerosos turistas do outro lado da raia. No entanto, ultimamente, com a concentração de gente que vai trocando a aldeia pela cidade, e com o movimento que ali surgiu a favor da língua local, o mirandês começou a ser um pouco menos evitado na própria cidade de Miranda. Por essa razão, creio ter chegado o momento de se reintegrar a capital do concelho no mapa da língua mirandesa.

Fora do concelho de Miranda do Douro – nas cidades do litoral português e no estrangeiro - existem muitos milhares de emigrantes que conhecem a sua língua e a utilizam sempre que as condições de comunicação o permitem. Não é porém desta geografia ondulante que aqui se trata, mas do território permanentemente ocupado por uma dada população.

RECONHECIMENTO DO MIRANDÊS COM LÍNGUA OFICIAL

A lei de oficialização da língua mirandesa foi publicada no Diário da República nr. 24/99, primeira série, com o nr. 7/99 de 29.1. Na base dessa lei esteve a ideia do valor da fala nativa como património espiritual do povo respectivo. Neste caso, do povo português. Uma pequeníssima parte desse povo é possuidor de um idioma que não é português. A questão, tantas vezes colocada, de se tratar de uma língua ou de um dialecto é irrelevante, pelo simples facto de que os dois termos não são alternativos. E, na medida em que nos últimos anos se constatara uma diminuição acelerada do número dos falantes desse idioma, tornou-se necessário assumir medidas especiais de protecção. Além de se procurar prolongar a sua existência na oralidade, tratava-se, também, de evitar que mais este idioma acabasse por se perder sem deixar de si senão uma vaga memória na memória dos vivos. O facto de, repentinamente, o mirandês se ter tornado uma língua oficial foi, por conseguinte, uma decisão de carácter político e institucional [2]. Porém, esta tomada de posição não teria sido possível se não se baseasse em constatações do foro linguístico, isto é, no facto de o mirandês constituir, hoje, um idioma independente. Neste caso, “idioma independente” significa, por um lado, que não se trata de um dialecto do português e, por outro, que o mirandês, embora pertencendo, historicamente, ao domínio geolinguístico asturo-leonês, tem no momento actual uma configuração suficientemente diferente para que possa exigir, para si, uma normatização própria. Apesar do seu fundo comum com as variedades asturo-leonesas, o mirandês é diferente de qualquer delas, tal como é diferente do espanhol que hoje se fala no território contíguo (Aliste e Saiago). Sendo assim, não pode obedecer nem às normativas gramaticais e ortográficas asturianas nem às castelhanas, devendo estabelecer as suas próprias. Para além disso, é ainda umvínculo colectivo de um número de falantes que justifica um esforço no sentido da sua preservação e continuidade.

É o que tem vindo a ser feito nos últimos anos. Procurou-se estabelecer uma convenção ortográfica que, sendo unitária, fosse aceitável e compreensível do ponto de vista da micro-variação local (sempre tão difícil de satisfazer), e continua-se a trabalhar nesse sentido. Pretende-se deste modo que um idioma que tem vivido quase exclusivamente na oralidade e à margem do ensino, seja dotado dos instrumentos básicos que lhe permitam expressar-se também por escrito com um mínimo de variações gráficas, e assim ter acesso a todos os registos de uso.

CONTINUIDADES E DIFERENÇAS

Os falares das localidades atrás enumeradas apresentam uma série de características, que, no seu todo, individualizam essa língua quer em relação ao português, quer aos falares contíguos, do lado espanhol. Retomo este assunto [3], acrescentando alguns dados novos, mas pondo em foco somente alguns aspectos que me parecem indispensáveis para uma caracterização sumária .

Continuidade em relação ao português geral ou ao português do norte

Na fonologia

(1) existência de f- inicial;

(2) africada surda ch proveniente de cl-, pl- e fl- latinos (chabe, chuba, chama)

(3) consoante palatal sonora proveniente de ly e c’l latinos (abeilha, mulhier)

(4) vocalização de [k] do grupo -ct- em -it- (leite, uito, nuite)

(5) existência dos ditongos ei e ou, com várias proveniências (lheite, rigueiro, pouco, cousa)

(6) palatais surda e sonora (escritas x e j, ge, gi (xara, hoije, gilada));

(7) sistema de quatro sibilantes, surdas e sonoras (çapato, diç; salsa, més; dezir, znudo; casa, asno) (como no português do norte interior);

(8) ausência de v, existindo em seu lugar b

(9) existência de vogais nasais (cumpadre) e de ditongos nasais (coraçon) [4]

(10) desenvolvimento de uma semi-vogal na sílaba (acentuada) que precede lh e j (abeilha, hoije).

Na morfossintaxe

(11) Um sistema verbal semelhante ao português, inclusive na utilização do perfeito do indicativo simples e do infinitivo conjugado.

De notar que vários destes traços constituem uma continuidade, não só em relação ao português, mas também em relação ao galego e ao asturo-leonês.

Continuidade lexical

(12) A maior parte do léxico mirandês distingue-se do português sobretudo do ponto de vista fonológico. Para além dos inumeráveis neologismos, um dos mais flagrantes exemplos de continuidade encontra-se nas denominações dos dias da semana, que em mirandês são semelhantes às portuguesas, ou seja: segunda, terça, quarta, quinta, sesta, sábado e demingo ou deimingo.

Algumas das principais diferenças em relação ao português:

(13)preservação de -n- e de -l- intervocálicos latinos (ganado, salir), o que origina diferenças no número de sílabas das palavras

(14) palatalização de -nn-, -mn- e -ll- latinos (canha, danhado, cabalho)

(15)existência de ditongos crescentes [5] ie e uo (tierra, puorta)

(16)existência de lh- no início de palavra, proveniente da palatalização de l- inicial latino, (lhuna) [6]

(17)tendência para inexistência de vogais altas átonas em inicial absoluta. Se se trata de vogais orais, aparecem em seu lugar ditongos decrescentes (einemigo, eisame, ousar, oubedecer por inimigo, exame, usar e obedecer [7]) e se forem nasais, são menos altas e/ ou ditongadas (anfeliç por infeliz, ountado por untado [8])

(18)a redução de des-, no início de palavra, a uma consoante sibilante, surda ou sonora, em conformidade com a consoante seguinte(znudo, çcalçar)

 (19) artigo definido masculino reduzido a l, com dois valores fonéticos diferentes segundo a inicial da palavra seguinte e a final da palavra precedente;

 (20) pronome pessoal you e pronomes possessivos miu, mie, tou, sou, etc.

 (21) utilização de vós como forma de tratamento respeitosa [9] (ex.: “Bós adonde ides, tiu Fracisco?);

(22)utilização de se [10] em vez da forma le do pronome objecto indirecto (ex. se lo dixe, debuolbo-se-la, em vez de dixe-le-lo, debuolbo-le-la)

(23) 3ª p. do pretérito perfeito em -o: el puso, fizo, dixo

(24) género de algumas palavras (l fiebre, la calor, la cunta no sentido de ‘conto’, la risa, la sangre, la fin);

 (25) existência de um conjunto de advérbios e locuções diferente do que existe em português: ende [11], alhá, alhina, aquina, acolhouca, delantre, de lheuga; astanho, a soutro die, a la purmanhana…;

 (26) - Nomes de lugar constituídos por dois substantivos, com ou sem artigo entre eles:Touça Galinha (Guadramil), Ourrieta l meio, Urreta lo Frezno, Ruta l Poço, Ruta l Anferno (Miranda), assim como por preposição + artigo + substantivo: Trás-la-fuonte, Tre la Torre, delantre la puorta. Este caso pode-se comparar, de certo modo, aos que acontecem em asturiano depois de locativos, quantitativos e outros casos: “tre llo mato, tre lla cruz”, etc.” [12] ou: “la mayor parte los nomes”, “cerca la casa l’amu”, “na mayor parte las casas” “los acabante nacer” [13], “ a la gueta la lhingua estándar” [14], “toa una riestra fenómenos llingüísticos” [15]; ou ainda, “sidra’l duernu e sidra’l sapu” [16].

(27) - possibilidade de construção de frases negativas com negação através do indefinido negativo e não como em português, através do advérbio não + indefinido (negativo ou não negativo): Ex. português: “espero que esteja bem e não tenha apanhado (nenhuma) (qualquer) (uma) dor de cabeça”. Ex. mirandês: “aspero que steia bien i tenga agarrado ningua delor de cabeça”.

(28) – No que respeita o léxico, há toda uma série de palavras que costumam ser citadas pelas pessoas que querem dar a conhecer a “excentricidade” da língua. Por exemplo, ourrieta e culaga, para dois tipos de parcelas de terreno, faleitos para fetos, scoba para a giesta, rocos para os cogumelos. Apresento, em adenda, alguns dados mais sobre o assunto.

Julgo que a enumeração destas características é suficiente para demonstrar a individualidade do mirandês, feita da combinação de traços das línguas vizinhas com traços que lhe são privativos.

A QUESTÃO DO ANTIGO TERRITÓRIO DE FALA ASTURO-LEONESA EM PORTUGAL.

Segundo António Maria Mourinho (1987, p.77), o Mirandês ocupava uma área mais vasta: por volta de 1967 ainda se falava o mirandês na aldeia de Caçarelhos, no Concelho de Vimioso e há mais tempo falava-se, nesse mesmo concelho, nas aldeias de Avelanoso, São Joanico, Vila Chã da Ribeira, Serapicos e Campo de Víboras e ainda, no concelho de Mogadouro, em Urrós e Bemposta. Há um século, já José Leite de Vasconcelos apontava o recuo sofrido pelo mirandês no decorrer dos tempos [17]. Mais perto de nós, Sletsjøe, depois de assinalar a sua antiga presença mais a oeste (Vimioso) e mais a sul (Mogadouro), acrescenta: “On est en droit de supposer, jusqu’à nouvel ordre, que le mirandais était parlé, autrefois, dans la région nor-ouest tout entière” (p.152). Seria necessário prová-lo, o que não é tarefa fácil… O certo é que indagando o território do distrito de Bragança se encontram faixas (cada vez mais ténues à medida que nos afastamos do concelho de Miranda) de topónimos que remetem para estruturas morfofonológicas semelhantes às mirandesas. Para um estabelecimento aproximado desse espaço, interessam, sobretudo, os traços que são comuns ao castelhano e ao asturo-leonês. A maneira mais simples e mais segura de estabelecer esse antigo espaço é seguindo o caminho já traçado por L.F. Lindley Cintra (1958). O território por ele estudado, a sul do Douro e entre o rio Coa e o Águeda, pertenceu ao reino de Leão até ao fim do século XIII, e nele perduram muitos topónimos de carácter leonês. O território a norte do Douro, porém, e nomeadamente a zona mirandesa, pertencia ao reino português desde o seculo XII. Isto significa que desde o século XII haveria, em princípio, condições políticas mínimas para um aportuguesamento dos topónimos transmontanos. É por isso extremamente interessante e esclarecedora a procura de topónimos de características leonesas no nordeste português. Eles revelam, melhor do que qualquer outro tipo de palavras isoladas, a continuidade de uma antiga população num dado território. Para o efeito, socorri-me, primeiramente, do levantamento publicado em 1938 pelo Abade de Baçal [18] e, em seguida, da compilação feita pelo Dr. Carlos Ferreira, da vila de Sendim, a partir das cartas militares à escala de 1/25.000. Na escolha por mim efectuada tive em conta alguns dos aspectos fonológicos, morfológicos e lexicais que distinguem o mirandês do português e que foram já mencionados. São eles:
 

a)A conservação de -n- e -l- latinos

b)A presença do diminutivo -ico

c)A inexistência da preposição -de- nos topónimos compostos por nome + determinante nominal ou por preposição + (art.) + nome

d)O aparecimento do micro-topónimo Urrieta. (Muitos outros haveria a acrescentar, como Culaga, Marra e derivados de Scoba, porém os dados de que disponho ainda não são suficientes para os poder utilizar)

Na apresentação que se segue, os topónimos do concelho de Miranda (cuja existência é evidente) são citados apenas no caso de ser necessário estabelecer qualquer comparação com o território envolvente.

a) Conservação de -n- e -l-:

-n- : Avelanoso [19] (conc. Vimioso); Beneita [20] (em Urrós, conc. Mogadouro); Chana, Chanas, Chanes, Chanos, Chaneira [21] (conc. Bragança e conc. Macedo de Cavaleiros); Quintanilha [22], conc. Bragança; Vale deVeneiras (Poiares, conc. Freixo de Espada à Cinta) e Vale de Veneiro [23] (em França, a norte de Bragança); Lagonota [24] (Vila Meão, conc. Bragança), Endrinal (Carrazedo, conc. Bragança), Andrineiras (Algoso, conc. Vimioso), Quinta da Endrineira [25] (Freixo de Espada à Cinta); Renal (conc. Vinhais), Renoleiras [26] (freguesia do Cobro, conc. Mirandela); Senra [27] (Alfaião, Espinhosela, Rebordãos e Salsas, conc. Bragança), Edral (conc. Vinhais); Tinalha [28] (conc. Carrazeda de Ansiães                                                                      

-l-: ala (conc. Macedo de Cavaleiros) e Vila de Ala (conc. Mogadouro); Gabilães[29] (Bemposta, conc. Mogadouro); Biduledo(Macedo de Cavaleiros), Biduleiro [30] (Carçãozinho, conc. Bragança; Pombares, conc. Macedo de Cavaleiros; Terroso, em Espinhosela, conc. Bragança; Soutelo Mourisco, conc. Macedo de Cavaleiros; Sernande e Penhas Juntas, conc. Vinhais) [31]; Candeleiros [32] (Macedo de Cavaleiros); Pelgo [33] (Freixo de Espada à Cinta); Pilanco (Aveleda, conc. Bragança), Pilo [34] (Guadramil, conc. Bragança) Faleto, Fleitosa, Urreta Faleto(Guadramil), Faleital (Rio de Onor), Fleitosa (Paradinha de Outeiro, conc. Bragança), Felitosa (Avelanoso, conc. Vimioso), Faleito [35] (Vila de Ala, conc.Mogadouro)

b) Diminutivo -ico:

Serapicos (conc. Bragança), Moitoitico, S. Joanico, Piçarrica (conc. Vimioso); Novalhico (Labiados, conc. Bragança).

c) Ausência da preposição de:

Do lado espanhol da fronteira com Miranda existe uma povoação denominada Castro de Alcañices a que os mirandeses chamam Castro Ladrão. Este povoado surge em documentos escritos em latim medieval como Castro Latronis. Este testemunho mostra-nos a versão latina do que hoje seria *Castro de (ou do) Ladrão [36]. Existem no território português, topónimos compostos por dois nomes justapostos, sem de entre eles (por exemplo, Outeiro Coelho, em Braga, ou Quinta Perdigão, nos arredores deLisboa. Nestes casos, o segundo substantivo deve ser um nome próprio, comoapontou José Leite de Vasconcelos. Não é isso que acontece nos topónimos transmontanos). Porém, na zona mirandesa e seus arredores, os topónimos constituídos por dois substantivos são particularmente frequentes. Com base nas informações disponíveis neste momento, e que são, aliás, bastante exíguas, pode-se desde já afirmar que a zona onde isso acontece se estende desde o termo de Bragança até Freixo de Espada à Cinta e, a ocidente, até ao conc. Mirandela [37].

Desse modo, encontramos, no concelho de Miranda:

Urreta Águia, Urreta Ferreira, Urrita Égua, Urrelsesto (= Urre l Cesto), Urreltouro (= Urre l Touro), Reta l Touro, Urreta l Poço [38].

Perto de Miranda:

Cabeço Cavalo, Fontassilba, Moinho Cubo, Poço Monteiro (Bemposta, conc. Mogadouro) [39]

Pena Cruz (conc. Mogadouro);

Urreta Vinhó (Algoso, conc. Vimioso).

Mais longe de Miranda, mas sempre no distrito de Bragança:

Vale Telhas (Lagomar, conc. Bragança)

Touça Galinha e Urreta Faleto (Guadramil)

Tombla Carreiro (Rego de Vide, conc. Mirandela).

Um caso frequente na toponímia transmontana é o da inexistência de de após outra preposição, arcaísmo também português que se conserva no nome de província Trás-os-Montes. A diferença relativamente a esse nome português está na utilização do artigo l, lo, la. Assim, na zona de Miranda encontra-se Treslombo (isto é, traduzindo para português, ‘Detrás do Lombo’), Tra la Tuda, Tra la Fuonte, Tre la Torre, etc. e, fora de Miranda encontra-se, por ex., Tre la Pereira, Tre lo Monte e Tresmonte (conc. Vinhais), Fonte Tresbaceiro (conc. Bragança).

Esta distribuição toponímica é mais um indício no sentido de que em tempos recuados - não sabemos quão recuados, mas certamente anteriores à formação das “nacionalidades” - a unidade linguística mirando-asturo-leonesa deve ter ocupado um espaço maior que na actualidade.

Dos concelhos de que existe informação acessível, o mais próximo, para além de Guadramil e Riodonor, no concelho de Bragança, é o de Vimioso. Combinando os dados do léxico corrente (cf. Adenda) com os topónimos já compilados, poderíamos desenhar uma série de delimitações consecutivas. Seriam elas, de norte para sul:

- Um núcleo formado pelo leonês bragançano, a oriente do rio Onor, compreendendo, actualmente, Riodonor e Guadramil e ainda testemundos de existência em Petisqueira e Deilão; entre a serra de Montezinho e Bragança, microtopónimos esparsos.

- O núcleo mirandês, cujos limites (indicados no ponto I) a norte e ocidente podem ser representados, grosso modo, pela ribeira de Angueira.

- A ligação entre o núcleo bragançano e o núcleo mirandês, numa linha delimitada pelo rio de Onor e Rio Sabor. Até ao momento foram detectados testemunhos de vária ordem, sobretudo lexicais e toponímicos, nas povoações intermédias de Labiados, Refega, Quintanilha, Rio Frio, Outeiro, Serapicos, Avelanoso. Especialmente interessante é o topónimo Faleito que aparece ao longo da fronteira com a Espanha, entre Avelanoso e Guadramil.

- Principal extensão do mirandês a ocidente: concelho de Vimioso, sobretudo no território delimitado pelos rios Angueira e Sabor (S. Joanico, Carção, Campo de Víboras, Algoso, Matela, até Penas Róias, já no conc. de Mogadouro).

- Outra faixa de alguns microtopónimos e testemunhos dispersos liga Bragança, Macedo de Cavaleiros e Alfândega da Fé, pela serra de Nogueira e serra de Bornes.

- A sudoeste de Sendim, foram detectados testemunhos em Bemposta, Urrós e Peredo, no concelho de Mogadouro.


Ao apresentar estas conclusões provisórias, queria ilustrá-las com mais alguns dos dados em que me baseio.


d) Micro-topónimo Ourrieta.

Na micro-toponímia mirandesa sobressai, pela sua grande frequência relativamente a qualquer outro topónimo, a palavra ourrieta, que designa um pedaço de terra. Segundo uns, trata-se de uma terra húmida, de pastagem, segundo outros, de uma concha de terra arável e segundo outros, de um vale. É pois um nome que se aplica a terras de vário tipo, em geral associadas à abundância agrícola ou à pastorícia. Por outro lado, é uma tradição local o considerar-se a palavra urrieta como um legado pré-românico na região. Independentemente da veracidade dessa asserção, ficámos a saber, através do Abade de Baçal [40], que Urrieta é um topónimo muito comum em terras bragançanas. Assim sendo, este autor dispensa-se de indicar a totalidade dos sítios onde ocorre, limitando-se a mencionar, para além dos situados no território de Miranda: Urreta Faleto (Guadramil), Urreta de Nalha (Coelhoso, conc. Bragança), Urreta da Velha (Urrós, conc. Mogadouro), Urreta das Vozes (Paradela de Mascarenhas, conc. Mirandela); Urreta Vinhó e Urreta dos Linhares (Algoso) Urreta (Alfândega da Fé), Urreta Formosa, Urretona, Urrita, e Orreta(sem localização explícita). Isto é, desde Guadramil, a norte, até Alfândega da Fé, a sul e, a oeste, até Mirandela. Para aprofundar esta questão socorro-me da compilação efectuada até Abril de 2001 pelo Dr. Carlos Ferreira [41], a partir das cartas do exército à escala de 1/25.000. Em primeiro lugar, contou, no conc. Miranda, 30; contou 15 no de Vimioso, 9 no de Bragança, 4 no de Mogadouro, 2 no de Macedo de Cavaleiros, 1 no de Mirandela e 1 no do Alfândega da Fé.

Estes números demonstram claramente a preponderância de Urrietas e Urretas no concelho de Miranda em relação aos concelhos vizinhos. Seguem-se Vimioso e Bragança.

A sul de Miranda existem ainda dois outros topónimos que me parecem estar relacionados com este: são eles Urrós, no concelho de Mogadouro, e Urros, no concelho de Moncorvo. Segundo o DCECH, Urros tem origem no lat. HORREUM [42]. Urrós terá origem no diminutivo HORREOLUM. Esta etimologia é inesperada, na medida em que a palavra hórreo,existente em galego e asturiano, parece não ter correspondência nem na língua portuguesa comum, nem no mirandês. Os canastros e os espigueiros (objectos e denominações que existem no norte do país), pertencem em exclusivo às zonas de cultivo do milho e são contemporâneos da introdução do milho graúdo na nossa agricultura. Os mais antigos não são anteriores ao século XVIII. Porém, muito antes disso, já na zona havia grande produção de cereais (trigo e centeio sobretudo) legumes (chícharos, favas…) e frutos que seria necessário secar e guardar. Se se tratasse de graneiros no género dos hórreos tradicionais, de material lenhoso sobre pilares de madeira, deles não teria ficado o menor vestígio no terreno, por isso seria difícil provar a sua existência. Mas nada se sabe sobre a forma ou material dos antigos celeiros dessa área. Hoje em dia, o que ali é mais frequente como depósito agrícola são umas covas denominadas bodegas [43]. Mas existe também o testemundo do topónimo Urre l Cesto, que poderia remeter para alguma construção em vime (material também abundante na zona). Porém, qualquer que fosse a forma ou o material, nada obsta a que se tivesse mantido a memória de antigos hórreos na toponímia, de preferência na micro- toponímia, e que esse nome, ou passasse a designar o lugar onde ele se achava, ou fosse aplicado a um terreno fértil, capaz de encher um hórreo. Acontece que em Portugal, além de Urros e Urrós em Mogadouro e Moncorvo, existem dois povoados de nome Urrô, um em Arouca, distrito de Aveiro, outro em Vila Boa de Quires, Marco de Canavezes, um Urros na freguesia de Mateus, conc. Vila Real, Orros ou Orrôs em Paredes do Coura. Joaquim da Silveira (1935), que estabeleceu o étimo de Urros, considera que pertence a esta mesma família o topónimo Urra que aparece duas vezes no interior- centro do país (nos concelhos de Fundão e Portalegre), e uma vez no Algarve (em Loulé) [44]. Urreiro é um outro topónimo da mesma família, que existe na zona fertilíssima da Vilariça, a oeste de Mogadouro [45]. Orro é a ortografia que L. Rodriguez Castellano confere ao hórreo da zona de Libardón, perto de Oviedo, construção de madeira que se destina a guardar frutos.

A consulta de documentos antigos portugueses, escritos em latim medieval ou já em português, não deixa dúvidas sobre a origem e a evolução destes topónimos.

Assim, no foral de Urros de 1182, escrito em latim, a povoação aparece com as grafias Orrios e Urrios (18 vezes Orrios, 13 vezes Urrios) [46]; por volta de 1236 a escrita é Urrus [47]; aparece Uros, sob a forma duros (= de Uros), em 1366 [48]; Hurros em 1337 [49]; durros (= de Urros) em 1370 [50]. Na Inquirição de Ulgoso (actual Algoso) de D. Afonso III, de 1258, publicada pelo Abade de Baçal, diz-se: “Donnus Vermudus de vrrolus iuratus et interrogatus…” [51] o que documenta o diminutivo -olus como explicação da terminação -ós de Urrós. É de notar que mesmo hoje em dia, os habitantes de Sendim chamam a essa povoação “Rulos” (o que corresponde ao mirandês Ruolos) e, aos seus habitantes, “ruleses” [52].

Quanto à palavra Urrieta, Ourrieta, ela aproxima-se tanto de hórreo como Urre, Urreta, Reta e sobretudo Urre se aproximam de Urro. Assim, perante os factos apontados, não me parece que seja demasiado ousado pretender que Urros, Urrós, Urrieta e variantes [53] tenham a mesma longínqua origem.

Esperemos que os estudos presentemente em curso em Terras de Miranda venham completar os dados aqui apresentados e permitam avançar mais na investigação do território. No que me diz respeito, parece-me que a preservação da palavra urrieta ou ourrieta na memória mirandesa se deve, sem qualquer dúvida, à continuada vivência da palavra Orro no território asturo-leonês. Porém a ocorrência das formas Orro, Urro, Urrô e Orra fora do espaço que pertenceu ao reino de Leão parece remeter o seu aparecimento para a época da própria romanização do território. Se assim fosse, este caso poderia resumir de forma exemplar o mistério da existência do mirandês nos nossos dias: um nascimento contemporâneo da formação dos romances ibéricos (num contexto peninsular desprovido de fronteiras); uma continuidade, através da Idade Média e até ao início do século XX, graças aos seus contactos prioritários com a zona asturo-leonesa contígua; e, finalmente, a sua preservação durante o século XX em virtude da sua localização periférica, de difícil acesso e de grande isolamento. Cabe à geração de 2000, que teve o privilégio de receber esta língua como herança cultural, esboçar o seu futuro, em condições completamente diferentes.

ADENDA

Sendo o léxico a interface por excelência entre a língua e a cultura, e tendo cada palavra uma história própria, a delimitação territorial de qualquer série de palavras é muito mais irregular que a delimitação dos fenómenos fonéticos. Para ilustrar este ponto, servi-me dos inquéritos para o ALEPG nas seguintes povoações: do distrito de Bragança: Riodonor, Guadramil, Lanção (conc. de Bragança); Constantim, Duas Igrejas, Sendim (conc. de Miranda do Douro), Penas Róias, Algoso (concelho de Vimioso), Sambade (concelho de Alfândega da Fé) ; do distrito de Vila Real: Santo André e Pitões das Júnias (concelho de Montalegre) ; Carrazedo e Sonim (concelho de Valpaços); do distrito da Guarda: Escalhão (concelho de Figueira de Castelo Rodrigo).

 Os conceitos escolhidos para esta apresentação circunscreveram-se a dois campos semânticos - plantas bravas e pequenos animais. Dentro desses campos, os conceitos em que, na zona, se detectaram diferenças entre o mirandês e o português normativo foram em número de dezasseis: unhagata, tanchagem, cogumelo, feto, giesta, hera, dente de leão, bugalho, sabugueiro; cão, uivar, poupa, traça, pirilampo, cigarra e aranha.

Os resultados foram os seguintes:

- Formam uma unidade separada, mirandesa, as palavras que traduzem ‘unhagata’ e ‘tanchagem’ – e que são, respectivamente, gatunha e lhenguarda, esta com a variante lingueira em Sendim. No resto das localidades encontra-se, maioritariamente, a denominação língua de vaca.

- O mirandês forma unidade com os dialectos leoneses bragançanos (de Riodonor e Guadramil): na tradução de ‘feto’ e ‘cão’, a que correspondem, nas cinco localidades, faleito e perro.

- Forma unidade com o leonês bragançano, Penas Róias e Algoso a palavra scoba que corresponde ao conceito de ‘giesta’.

- Forma unidade com o leonês bragançano e também com Lanção, Sambade, Penas Róias e Algoso as palavras que correspondem a ‘sabugueiro’, ‘bugalho’ e ‘poupa’ e que são, respectivamente, caneleiro, bulhaca ou bulhacra e boubela ou boubielha[54].

- Forma unidade com o leonês bragançano, Lanção, Sambade, Penas Róias, Algoso e ainda Pitões das Júnias, Sonim e Escalhão, a palavra hedra que corresponde a ‘hera’. (Forma hedre em Rio de Onor).

- Para ‘uivar’ surgem as palavras ular no leonês bragançano, uliar em Lanção, Constantim, Sambade, Algoso, Ribeira da Fraga e Santo André. Variantes ulhiar em 2 Igrejas e ouliar em Sendim.

- A palavra aranhon, aranhão, como nome da ‘aranha surge no leonês bragançano, mirandês, Lanção, Sambade, Penas Róias, Algoso, Ribeira da Fraga e numa localidade do distrito de Viseu (V4).

- A palavra lheitariega como denominação do ‘dente de leão’ encontra-se em guadramilês, mirandês e sobas formas leitariga em Sendim e leitarega em Penas Róias.

- Chicharra como nome da ‘cigarra’ surge em riodonorês, mirandês e, no distrito de Vila Real, em Santo André, Sonim e Ribeira da Fraga.

- O mirandês forma unidade com Guadramil, Lanção, Sambade e Penas Róias na denominação roca ou roque dada ao ‘cogumento’- porém essa denominação aparece igualmente no distrito de Vila Real, em Sonim e Ribeira da Fraga (em Sambade surgiu a forma roquilhos).

- Forma unidade com Penas Róias e Algoso a denominação do ‘pirilampo’ que é pastora ou pastorica.

- Para a ‘traça’ surgiram as denominações mirandesa pulielha e sendinesa pulilha, riodonorês pulia, pulela em Algoso e ainda pulé na localidade de Escalhão, no distrito da Guarda.

Estes resultados permitem estabelecer uma primeira escala de semelhanças.

Assim, encontraram-se, para 16 conceitos:

11 denominações semelhantes às mirandesas em Riodonor e Guadramil; 9 em Penas Róias e Algoso; 7 em Sambade e em Lanção; 4 em Ribeira da Fraga; 2 em Pitões das Júnias e 2 em Escalhão.

Em relação aos falares transmontanos vizinhos há uma evidente gradação nas diferenças.

Estes resultados, para além de ilustrarem a pertença dos falares leoneses de Bragança à mesma área linguística, mostram, em domínios de comunicação restrita, um fundo cultural que não se confina ao território mirandês mas que se vai diluindo em leque através do nordeste transmontano.


 

BIBLIOGRAFIA E FONTES

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26.06.2001