CONCELHO
DE MOGADOURO
Pelo Drº António Rodrigues Mourinho
Vivemos uma época em que as pessoas mostram cada vez mais interesse
pelo saber. Sente-se a necessidade de saber ler e escrever, saber contar, saber
entender.
E não contentes com isso os povos procuram saber a origem própria de
cada indivíduo e de cada família. Procuram-se as raízes dos costumes e
tradições e pede-se explicação para eles.
Surge assim o interesse pela História da arte, da economia, da
religião, da cultura de cada povo e de cada civilização.
Seria impossível satisfazer a curiosidade legítima de tantas pessoas
que querem saber e procuram a origem de pessoas e coisas. Apesar disso, e
porque a gente deste concelho de Mogadouro não faz excepção no campo e no desejo
de saber, um grupo de pessoas de boa vontade lanchou-se ao encontro desse desejo
legítimo e foi daí que surgiu o Plano ou Projecto Integrado de Desenvolvimento
Cultural de Mogadouro.
Grande em extensão territorial, o concelho ainda não permitiu recolher
tudo o que fosse necessário para uma análise completa dos seus valores quer
etnográficos quer artísticos. Mas o pouco que sabemos e recolhemos de muitos
dos seus povos já nos vai dando uma visão da riqueza que ainda possui no campo
da cultura popular e que de maneira alguma se pode deixar desaparecer.
A incúria de pessoas cultas, o desinteresse das populações aliado a uma
certa ignorância dos valores ancestrais, o surto esmagador da civilização
industrial, a música comercial, e o artificialismo que nos nossos dias vai
aparecendo por toda a vai fazendo desaparecer os restos de civilizações que nos
vão deixando certas saudades e das quais gostaríamos de ter muito mais
conhecimentos.
Terra de lavradores e caçadores, este concelho conserva ainda muitas
das tradições ancestrais que se vão manifestando ao longo do ano em festas e
costumes de grande significado e profundidade etnográfica que podemos ainda hoje
apreciar e estudar em muitas das povoações do Concelho.
Como em todo o Nordeste, as festas de carácter etnográfico começam pelo
dia de S. Luzia (13 de Dezembro) - chamada a luminosa. A partir desta data, os
dias começam a diminuir em intensidade e duração de luz e calor.
É muito provável que na Idade Média esta festa se tenha instituído e
celebrado para cristianizar a espera de uma nova luz e para cristianizar também
o começo das festas do Solstício de Inverno.
AS FOGUEIRAS DO NATAL - Os povos antigos e muito especialmente os do
Hemisfério Norte, quando os dias começavam a diminuir, à medida que se
aproximava o Solstício de Inverno, temiam que o sol se extinguisse
completamente. Por isso mesmo adoptaram costumes rituais apropriados para estas
épocas do ano que tinham por fim chamar o sol a brilhar de novo com mais
intensidade de luz e calor, para que a Terra Mãe não deixasse de ser fértil e
fecunda.
Entre os rituais das festas dos Solstícios podemos apontar entre nós, o
costume das "Fogueiras do Natal" ou "Fogueiras do Galo" que se acendem em
todos os povos do Nordeste na Noite de Consoada.
Sabemos bem como as mocidades das povoações desta região, na Noite de
Natal, dão volta às povoações puxando um carro de bois que carregam com o s
toros mais grossos que encontram "desprevenidos" ou que os donos deixaram de
propósito às portas ou nos sequeiros para a fogueira do galo.
Com o aparecimento dos tractores agrícolas, além dos toros que juntam à
volta das povoações, os mocos vão pelo termo à procura de troncos que tenham
ficado por lá esquecidos. Mas já antes do aparecimento dos tractores isto se
fazia com carros de bois e até com as rastras.
Existe ainda o brio das fogueiras e o bairrismo chega a tal ponto que
as mocidades têm um certo orgulho em apresentar cada um a melhor fogueira.
Para a nossa gente o Natal não seria Natal nem teria graça se não se
fizesse a "Fogueira do Galo".
Mas se formos perguntar a velhos e novos o motivo que os leva a acender
a Fogueira do Galo, responder-nos-ão que é um costume de toda a vida.
Não há dúvida que a tradição tem muita força.
Ao longo dos séculos e passando de geração vai-se esquecendo o
significado de tantas coisas e factos que parecendo insignificantes encerram em
si uma profundidade cultural e religiosa que define bem as crenças do homem da
Pré-revelecão Monoteísca e Cristã.
As fogueiras do Natal são ritos de fogo sagrado e lume novo e são mais
frequentes por ocasião do Solstício de Inverno.
Os antigos acendiam as fogueiras com a intenção de persuadir o Sol a
brilhar com maior intensidade de luz e calor.
O culto do sol ocupa um lugar primordial na História das Religiões e
civilizações antigas.
Já na civilização e religião egípcia se acreditava que o sol encarnava
na pessoa do Faraó. Os antigos habitantes das margens do Nilo compuseram hinos
e cânticos belíssimos em honra do deus Sol. Aparecem hinos como este:
"Que belo és quando te levantas no horizonte do céu ó Rã
(Sol)
tu que dás origem à vida. Quando repousas no horizonte
ocidental, a Terra fica em trevas como morta...
Tu criastes a Terra segundo o teu coração com os homens e
os
animais tudo o que na Terra existe..."
Assim se exprimiam em honra do sol as civilizações das Pirâmides.
Mas não só os egípcios também os Sumérios e os povos das
civilizações Antigas do Próximo Oriente desenvolveram a "teologia" solar de uma
maneira extraordinária.
Na Grécia e em Boma o culto solar ocupou um lugar de segundo plano. Em
Roma aquele culto foi introduzido pelas populações Orientais, entre elas os
soldados e os comerciantes. Desenvolveu-se com grande intensidade e esplendor
nos tempos imperiais, mas cheio de artificialismos rituais causados pelo culto
dedicado exclusivamente ao Imperador.
O culto solar na Península Ibérica é anterior aos Romanos e foi
com certeza, introduzido por comerciantes egípcios, cretenses, fenícios e mais
tarde cartigineses e ceitas. Depois de terem abordado as praias marítimas,
muitos deles seguiram o curso dos rios e fixaram-se nos terrenos mais produtivos
para a agricultura e onde puderam encontrar metais que lhes pudessem servir para
fabrico dos seus utensílios e trocas comerciais.
Não há dúvida que há uma relação muito directa e forte entre as
civilizações dos castros e as festas solsticiais e outras festas de carácter
etnográfico que ainda aparecem hoje neste e em outros concelhos do Nordeste.
Essas festas gentilicas carregadas de ritualismo pagão existem a
par das festas e da liturgia cristãs e são relíquias que não se podem perder e
que devem voltar à sua pureza ritual primitiva em que tudo for possível.
Quando falamos nestas festas solsticiais queremos dizer que a par
das fogueiras do Natal outros ritos e festas se instituíram, desenvolveram e
Celebram naquela quadra festiva em que a Igreja Católica celebra o
Nascimento de Cristo como o Sol que ilumina todo o homem que vem a este mundo.
Há ainda, pelo menos, duas povoações no Concelho de Mogadouro onde
precisamente no dia de Natal aparecem ritos de sabor gentilíco ou pagão
misturados com o ritual cristão:
Na povoação de Vale de Porco a festa do "VELHO" ou Chocalheiro.
Na povoação de Bruçó a festa dos "VELHOS" que antigamente tinha também
Chocalheiro.
No dia 26 de Dezembro, festa cristã de St. Estevão, aparece em
Bemposta o Chocalheiro.
No dia 1 de Janeiro aparece em Tó o "FARANDULO" e a "CÉCIA" e em
Bemposta de novo o "CHOCALHEI RO".
Apesar de não ser especialista em Etnografia, atrevo-me a fazer uma
breve interpretação etnográfica-iconográfica de alguns elementos que constituem
as máscaras de algumas das figuras que aparecem nestas "bizarras festividades".
Apesar da sua máscara terrível e medonha que faz ainda arrepiar
muita gente, o chocalheiro é uma figura simpática e cheia de significado.
Vestido de linho grosseiro tingido de preto, o chocalheiro de Bemposta
aparece como uma figura tauromórfica.
Nas pontas dos chifres ostenta duas laranjas espetadas; cai-lhe do
"queixo uma barbicha de bode; na parte da nuca pende-lhe uma bexiga de porco
cheia de vento; na testa tem um disco e escorrendo pela face uma pequena
serpente; na mão segura uma tenaz e rodeada à cintura mostra uma serpente de
grande porte".
Não há dúvida que todos estes elementos são iconograficamente
importantes e podem-nos dar pistas muito interessantes para a interpretação
etnográfica e mitológica da figura. Além de tudo, pode contribuir para que
possamos saber alguma coisa sobre a origem desta e de outras figuras e o seu
significado.
Sabe-se que na Ásia Menor também há chocalheiros, ainda hoje. Mas se
consultarmos um bom compêndio de História Geral, encontramos já na Civilização
Cretense - entre o ano 3. 000 e 2. 500 A. C-Hélios, o deus Sol como esposo da
Mãe Terra representado por uma figura tauromórfica. Mas não só em Creta também
já nas civilizações do Antigo Oriente encontramos figuras tauromórficas
representando o Sol e outras divindades.
No Egipto, a deusa Athor, divindade protectora da facundidade,
aparece-nos representada por uma figura de mulher com cabeça de vaca e no baixo
relevo da Baleta de Narmer essa figura aparece como deusa geradora de todos os
deuses da mitologia Egípcia Antiga.
Seguindo a opinião de grandes autores da História da Antropologia e a
da Etnografia como Mircea Heliade, Mischa Titiev, Dr. José Leite de Vasconcelos
e outros, não vamos errar, se dissermos que as figuras tauromórficas do
Chocalheiro da Bemposta, do "VELHO" de Vale de Porco e do antigo Chocalheiro de
Bruçó são símbolos da Magna Mater Divina, a Terra Mãe.
O touro representou para os antigos a força física e creadora e onde
quer que este símbolo apareça quer nas culturas Neolíticas quer na iconografia
ou nos ídolos de forma bovina eles marcam a presença e são a expressão da Grande
Mãe da Fertilidade.
Mas há outro símbolo fundamental que não pode passar despercebido na
interpretação iconográfica da máscara do Chocalheiro de Bemposta: É a serpente
que tem rodeada à cintura e também na testa. É de notar também que o antigo
chocalheiro de Bruçó tinha uma máscara ornamentada com serpentes pintadas.
A serpente é um animal simbólico da fertilidade. Mas além de
simbolizar a fertilidade, a serpente é um animal de simbolismo polivalente, mas
todos os símbolos "convergem para uma única ideia central: a serpente
distribuidora de fecundidade, ciência e, mesmo, imortalidade. Lembremos o caso
do Livro do Génesis em que a serpente apontava a Adão e Eva o caminho da
deificação, se comessem o fruto da árvore proibida por Deus. Além disso havia
um mito arcaico que dizia que a serpente guardava a fonte sagrada da
imortalidade.
Na Grécia e em Roma havia crenças que afirmavam que as serpentes
acasalavam com todas as mulheres.
Crenças relacionadas com a serpente e a fecundidade existem em
toda a Europa, ainda hoje, mesmo entre nós. Um pequeno exemplo é ouvir dizer
com frequência que quando as cobras saem das tocas a chuva não falta o que pode
estar relacionado com antigas crenças que relacionavam as serpentes com a
fertilidade da Terra Mãe.
A nossa gente ainda hoje diz que a "chuva é o sangue da terra". Outro
exemplo da relação mulher-serpente-fecundidade-fertilidade é o caso da Índia em
que as senhoras que desejam filhos adoram as serpentes.
No caso do Chocalheiro de Bemposta e de Bruçó a serpente será mais um
símbolo da Terra Mãe que tudo produz para a vida do homem desde a água até às
plantas e animais.
Os frutos que o Chocalheiro ostenta no alto dos chifres não são mais do
que o símbolo dos frutos que se desejavam e desejam para o novo ano que começa.-
E o caso das Fogueiras do Galo: o homem do gentilismo desejava luz e calor?
acendia fogueiras para atrair o Sol. Queria frutos da terra abundantes?
ostentava os frutos da colheita; queria água abundante? entornava água no chão.
Nestas figuras aparecem outros elementos que, embora de menos valor,
não nos devem passar despercebidos.
Em Bemposta o Chocalheiro apresenta-se "armado" de uma tenaz de ferro.
Em Vale de Porco o "Velho" aparece de espeto na Mão.
Em Tó o "Faranduio" aparece com uma estaca de pau.
Estes instrumentos serviam para tirar peças dos fumeiros nas casas onde
aqueIas figuras entravam.
Figuras de "Velhas" armadas de fortes garfos aparecem-nos também nas
festas de fim de verão aqui no Concelho de Mogadouro. Aquelas "Velhas", que são
homens vestidos de mulher à antiga, acompanhavam a dança dos paulitos e entravam
nas casas nos dias de festa e roubavam das panelas o que lhes fosse permitido
levar.
Havia povoações onde estas figuras levavam botas de vinho para dar de
beber aos "dançantes" e para eles próprios beberem até à embriagues.
Em Tá o mordomo da festa do Santo Menino, que se
celebrava e celebra nos primeiros dias de Janeiro, dava pão, vinho, frutos secos
e doces a toda a população.
Seriam estes frutos distribuídos com o sentido propiciatório, desejando
um novo ano cheio de riqueza e fertilidade? É possível que assim fosse.
O que é certo é que estes comes e bebes são, ainda hoje, frequentes
nestas e em outras festas, principalmente no fim do Verão e não há dúvida que
são restos de celebrações de Bacanais que aqui ficaram.
Das festas Dionisíacas dos gregos também nos ficou alguma coisa. Dos
ritos Dionisíacos ficaram as "procissões" com as figuras etnográficas,
acompanhadas com os instrumentos musicais populares: a gaita de foles, a caixa e
o bombo.
Em alguns sítios usavam a flauta a que os
Romanos chamavam tíbia, mas que tem origem Pré--histórica.
Voltando um pouco atrás e lembrando tudo o que os velhos, chocalheiros
e farandulos recolhem, devo acrescentar que hoje tudo reverte em favor da festa
religiosa e profana, mas antigamente não era assim. O que se recolhia era para
o repasto bacanal que estas figuras faziam com outras pessoas.
A figura do farandulo de Tó bem como os outros dois elementos que
formam o conjunto -- a cécia e o moço - trava uma luta com a cécia. Será esta
luta entre farandulo e a cécia o símbolo do antagonismo entre a luz e as
trevas? O moço que se coloca sempre entre o farandulo e a cécia não será o
símbolo do poder invisível que defende a luz e faz com que ela brilhe com mais
intensidade? Assim somos levados a crer e a interpretar.
Outra coisa interessante que apreciamos na actuação do "farandulo" é
que ele nunca segue o caminho direito. Vai sempre ou por atalho ou pulando as
paredes e, se o deixarem, entra nas casas e enche, pouco a pouco, o saco com
chouricas, salpicões e o mais que possa apanhar.
É realmente uma festa extraordinariamente bizarra esta do Farandulo em
Tó !!.
Além das festas de Vale de Porco, Bruçó, Bemposta e Tó e ainda dentro
do período solsticial, não quero esquecer a festa de S. Sebastião em Brunhosinho
com a sua "chocalhada" ou "pandorca" que começa no dia 17 de Janeiro e vai
terminar com a fogueira no dia dezanove e com a festa propriamente dita no dia
20.
Também em Soutelo, no 3º Domingo de Janeiro se celebra a festa do Santo
Nome de Jesus. É a célebre festa do "Vítorró". É festa do ramo de
rosquilhas que metia também na véspera ou nesse dia mesmo uma chocalhada e a
saudação ao mordomo da festa: "Vitorró, senhor mordomo". Infelizmente conserva
pouco da sua pureza etnográfica primitiva a festa do "Vitorró". "Mas o ramo
mantem--se.
Os ramos existem ainda em muitas povoações do Concelho de Mogadouro:
Soutelo, Valcerto, Vilarinho dos Galegos, são povoações onde se festeja o ramo
com toda a animação. Em Valcerto a festa do ramo é no Domingo anterior ao
Carnaval.
Este costume de ramos vêm de longe. Vem já anotado no Livro das
Visitações do Século XVII da paróquia de Brunhoso.
Nas festas dos solstícios os mascarados aproveitam a ocasião para
certos abusos de toda a espécie, indo até à depravação moral e, até, à
violência.
Por isso os bispos de Miranda nos séculos XVII e XVIII e os bispos de
Bragança nos séculos XVIII e XIX proibiram as "chocalhadas, as Pastoradas, as
Pandorcas e os fiadouros nocturnos".
Na pastoral de 31 de Janeiro de 1687 o Bispo de Miranda, D.
Antônio de Santa Maria, era assim que lançava a voz contra certos costumes
"abusivos".
"Também nos veio a notícia que em alguns Jogares deste nosso bispado se
teem introduzido muitos abusos perniciosos: a saber pelos dias das actavas do
nascimento do Senhor se fazem hum modo de festas a que chama vulgarmente
"Pandorcas" fazendo danças e festejos por muitos dias com muitas ofensas a
Deus comendo e bebendo demasiadamente, descopondo muitas pessoas de que
resultam graves pendências e outros pecados originados de galhofas entre
mancebos e moças".
"Por isso proíbe as pandorcas e se persistissem que lhos denúnciassem
para proceder contra eles.
Em 5 de Junho de 1744 o bispo de Miranda, D. Diogo Marques Morato
proíbia também as pandorcas: Não se façam ajuntamentos de homens e mulheres de
noite nem pandorcas ou fiadelas sob pretexto algum sob pena de 100 réis e
os cabeças de 500 réis".
D. Fr. João da Cruz, bispo de Miranda, em Dezembro de 1755,
proíbe bailes, jogos pandorcadas e toda a casta de ajuntamentos de
homens com mulheres e as pandorcadas que de noite se costumam fazer.
Proíbe ainda os fiadouros públicos que se fazem de noite, assim nas
ruas como nas casas por serem ajuntamentos de homens e mulheres, bem como as
chamadas
festas de St. Estevão por se comporem de pandorcas danças, algazarras e
tumultos ocasionados pela eleiçaõ de um rei e outras mais dignidades que
nelas elegem por cuja ocasião tem havido mortes e pendências pelos excessos
de comes e bebes que nos ditos dias se fazem".
Estes abusos eram punidos com multas pecuniárias, mas também com
censuras que iam até à excomunhão. Eram os tempos.
Mas também no século XIX, em 1869 em pleno mês de Dezembro, D. João de
Aguiar, 2. Bispo de Bragança e Miranda, fazia sair uma circular em proíba as
"pastoradas" do Natal por serem mais que verdadeiras orgias e "certos
cânticos que dentro das igrejas fazem oferecendo ramos aos santos os quais
cânticos nada têm de sagrado"...
Neste ponto não tinha razão o Prelado. Os cânticos do Natal que ainda
hoje se cantam em muitas terras e as próprias pastoradas tinham muito de
sagrado. Eram autênticos rimances em honra do Deus Menino.
O que é certo é que estes costumes estavam bem vivos entre o povo nos
séculos XVII, XVIII e até XIX. É o que nos testemunham os documentos do tempo,
como tivéssemos ocasião de ver.
Um facto que nos salta aos olhos e que é interessante notar é que os
Prelados usam mesmo o termo "Pandorca". Este termo usado no século XVII e XVIII
tem ainda uma força de classicismo muito forte. O significado da "Pandorca" é
muito profundo, a meu ver.
Pandora era a divindade grega, senhora de todos os dons. Pan era um
deus venerado em toda a Arcádia, na Grécia, e era o protector dos pastores,
cabreiros ou cabaneiros e seus gados, mas era também um deus da fecundidade.
Se associarmos todas estas ideias encontramos em todas estas festas e
celebrações muito da mitologia antiga misturada com mitologia grega, romana e
cristã.
Isto não podia deixar de ser num povo que sofreu a mistura de tantas
raças, ideias e religiões.
Seria exaustivo, se tentássemos descobrir o significado profundo das
festas populares de carácter etnográfico.
Apesar das proibições dos Bispos, apesar dos seus milénios de
existência, o povo conservou estas festas rituais. É um sinal evidente que elas
estão bem enraízadas e fazem parte da alma popular.
Deixar extinguir o pouco que ainda existe é acabar com o que há de mais
puro neste rincão Nordestino e é criar um vazio que nunca mais será preenchido.
Ainda nesta quadra do Natal teríamos de falar na festa dos Reis que em
algumas regiões chamam "Janeiras". É uma festa cristã, mas tem a sua origem nas
festas romanas em honra do deus Jano. Era um deus com duas faces, uma voltada
para o presente e outra para o futuro. Os Reis -comes e bebes- são restos de
Bacanal de mistura com ritos solsticiais. Havia quadras bem populares e que
dizem bem o significado da festa.
Nós pedimos, nós pedimos,
Mas não pedimos dinheiro
Pedimos passas e figos e
Linguíças do fumeiro.
Viva lá, senhor F...
Raminho de salsa crua
Quando vai para a igreja
Alumia toda a rua.
Quem vem aqui de tão longe
De noite pelo escuro
Certo é que quer provar
Desse seu vinho maduro.
Estas e outras quadras entoadas por grupos de pessoas no silêncio
das nossas aldeias serranas, em noites iluminadas pelo luar de Janeiro, faziam
vibrar de júbilo a alma campesina e pura das nossas gentes transmontanas.
Se há festas dignas de ser conservadas e restauradas (onde se
perderam), é a festa dos Reis. No campo social e familiar é uma celebração que
contribui imenso para a união e sã convivência entre familiares e amigos.
O CARNAVAL - Outra festa de carácter etnográfico é o
Carnaval. Nas duas semanas anteriores a rapaziadadas aldeias começa a anúnciar
a festa do Carnaval. Para isso vão aos carvalhos, enchem sacos de bolhacas e à
noite vão pelas casas e as que estiverem com a porta aberta ou desfechada têm o
rico presente de uma dessas sacadas de bolhacas a rolar pela casa fora. A isto
se chama "deixar cacadas". É evidente que tudo isto é feito no maior silêncio e
segredo. Os que lançam a "cacada" fogem sem deixar rasto.
Aparecem também as "pandorreiras" que são instrumentos de som
estridente arranjados de um cântaro a cuja boca se adaptou uma bexiga esticada e
no centro da bexiga uma palha que se fricciona com os dedos, produzindo um som
esquisito.
Também as rondas de chocalhadas pelas povoações compostas de ferros e
latos velhos, são brincadeiras de anúncio de Carnaval.
No dia de Carnaval ainda aparecem máscaras típicas de crítica social.
O enterro do Entrudo faz-se ainda em muitas das nossas povoações.
Ainda neste ano de 1981 se fez o enterro do Entrudo na freguesia de S.
Martinho do Peso com toda a pureza do costume. A Rádio Televisão Portuguesa
filmou o enterro do Entrudo na freguesia de Travanca.
O Carnaval é uma celebração que vem de longa data.
Segundo Caro Baroja, o Carnaval de características cristã data do
século XVI.
Nesse dia fazia-se a despedida da carne. Neste, como em outros
concelhos e regiões, havia gente que guardava a carne que sobrava no dia de
Carnaval e só no dia de Páscoa é que a comiam.
Não se comia caldo no dia de Entrudo, porque havia o mito segundo o
qual os mosquitos mordiam ao longo do ano aqueles que comessem caldo nesse dia.
"O jogo do Cântaro" e "correr as rosas" eram divertimentos próprios
deste dia.
Mas de interesse etnográfico são também os "casamentos do Entrudo" .
No dia de Carnaval à noite, depois de toda a gente recolher e dormir,
os rapazes munidos de funis (chamados embudes) vão para os pontos mais altos da
povoação e a( fazem os célebres "casamentos". Geralmente casam os rapazes ou
raparigas melhores com as mocas e rapazes piores, (em todo o sentido) que houver
na povoação. Assim um rapaz novo pode levar por esposa uma solteirona velha e
uma rapariga rica poderá levar um solteirão pobre, velho e feio, com defeitos
psíquicos ou físicos.
Os dotes são todos feitos e dados com sarcasmo e ironia.
Eis o ritual dos casamentos do Entrudo, em algumas das povoações de
Mogadouro:
- Ó camarada, um casamento vamos a fazer !!!
- Quem é, responde do outro lado o companheiro.
- É fulano com fulana.
- Está bem, está bem. Essa é boa !!!
- E que lhes hemos de dar de dote?
Uma toalha de linho
Onde o diabo limpa a cara
Para que limpem eles
O focinho !!
Os dotes eram, geralmente, e são ainda ocasião para apontar os defeitos
físicos ou morais das pessoas.
Uma moça de pequena estatura recebeu de dote uns "sapatos mais altos
para crescer mais."
Uma moça que não fosse limpa recebia de dote alguns kilos de soda para
Iavar a cara".
Para um rapaz ou moça que não fossem muito desempenados de corpo o dote
consistia "numa estaca para os endireitar."
A uma moca namoradeira "ofereceram" por dote um cântaro para ir à fonte
para ver o namorado. "E Entrudo passa tudo, diz o povo".
Há dotes mais e menos engraçados que por vezes davam mau resultado. É a
"vindicta popular" que se manifesta nestes dias.
Além das pessoas, há em algumas povoações o costume de casar os montes
como é o caso da povoação de Azinhoso onde casam dois montes opostos.
Em S.
Martinho do Peso casam, ainda hoje, a corriça da Orreta com a corriça do Estil.
São manifestações telúricas que ficaram do gentilismo e que têm em si muito de
ritualismo de fecundidade. Ao longo da Quaresma a par de tudo o que é cristão
aparece o costume de "serrar as velhas".
Os rapazes, munidos de serras de pau ou imitando estas fazendo a acção
de serrar chegam às portas das velhas, geralmente viúvas e, ao mesmo tempo que
serram vão dizendo quadras mordazes que por vezes exaltam os ânimos das pobres
velhas. Pude recolher ainda algumas dessas quadras que aqui transcrevo:
Estamos no meio da Quaresma,
Ainda não provamos o toucinho,
Vamos a serrar a velha,
Por baixo do focinho !
Estamos no fim da Quaresma,
Inda não provámos o bacalhau,
Vamos a serrar a velha,
Como quem serra um pau !
Serra, serra,
Bom serrote,
As costas
Do bom velhote !
Para uma velha de grande estatura os rapazes compuseram esta quadra:
Vamos a serrar a velha
Mais dura que a carqueja
Esta velha bem serrada
Dá madeira pra uma igreja.
Outra quadra
um pouco mais jocosa para uma senhora já de muita idade:
Esta velha é tão dura
Mais dura do que o ferro
Se a serra chega à miola
Ó velha que dás um berro.
É ainda no tempo da Quaresma que nas povoações do Concelho se
faz a encomendação das almas com toda a devoção e respeito.
Com letra igual em quase todas as povoações, embora com as suas
pequenas variantes e com música diferente em todas as povoações, depois da meia
noite, quando as pessoas dormem o primeiro sono, um grupo de pessoas, "cantam as
almas" nos locais mais próprios das povoações lembrando aos vivos com saudade e
respeito as almas dos seus mortos e a obrigação de piedade que para com eles têm
em consciência:
Acorda, ó pecado
Acorda não "dormes" mais
Olha que se estão queixando
As almas dos vossos pais
Que lhes "comisteis" os bens
E delas não vos lembrais.
Perdoai ó irmãos meus
Por vos acordar agora
Ficai-vos com Jesus Cristo
Que eu com Deus me vou embora.
A encomendação das almas bem como tudo o que para
trás ficou merece um trabalho muito mais apurado.
Não foi minha intenção ser exaustivo.
Ficou muita coisa por dizer e comentar.
Este pequeníssimo trabalho tem em vista a
culturização da gente do Concelho de Mogadouro no sentido de valorizar mais tudo
aquilo que sendo puro e nobre é digno de respeito preservação e purificação.
É minha intenção dizer às pessoas a quem compete a
responsabilidade do ensino e educação de jovens e adultos que têm a máxima
obrigação de não deixar desaparecer aquilo que é nosso, deixando-o trocar por
outras coisas "importadas" que lançam no esquecimento e quantas vezes, no
desprezo e no abandono o que há de mais puro na alma popular.
O progresso do Nordeste será económico, será social, mas que seja
também cultural. "Nem só do pão vive o homem". Que a cultura se faça e
desenvolva, entre nós, valorizando e explorando; estimando e conservando os
costumes, as músicas, as danças, as festas e tudo aquilo que possa tornar mais
humana e mais civilizada a alma grande das nossas gentes.
BIBLIOGRAFIA
Alves, Pe. Francisco Manuel - Memórias Histórico
Arqueológicas do Distrito de Bragança - Vol. I
e XI.
Elíade - Mírcea - Tratado da História das Religiões --
Edições - Cosmos, 1972
Titíev, Mísha, - Introdução à História da Antropologia.
Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa 1972.
Arquivo Paroquial de S. Martinho do
Peso.
Arquivo Paroquial de Brunhoso, Livro
de Visitações 1630 -1703
Arquivo Paroquial da Castanheira,
Livro de Visitações de
1715 - 1800
|