ASPECTOS
GEOMORFOLÓGICOS DA BACIA
HIDROGRÁFICA DO DOURO
Bernardo de Serpa Marques / António de Sousa
Pedrosa
RESUMO
Repartida
por Portugal e Espanha, a
Bacia do Douro, tem interessado diversos
Investigadores da área de Geomorfologia que, porém, se ocuparam de aspectos
específicos e em áreas relativamente restritas.
Com base em
estudos que vimos realizando, surge agora a oportunidade de coordenar as
diversas contribuições, e ensaiar uma tentativa de visão geomorfológica global
da Bacia do Douro. Mostra-se a diversidade e complexidade das formas existentes
e tenta-se indicar pistas de investigação. subsequentes.
«0 Douro
foi o último que acordou; por isso rompeu por onde pôde, sem se importar com
a escolha de sítio, e eis porque as suas margens são tristes e
pedregosas.»
*
Leite
de Vasconcelos
Os
rios como elementos vivos de uma paisagem que, pelo seu dinamismo, ajuda a
modelar, «Ont toujours fait partie de la vie de l'homme et de ses
préoccupations» (Michei Rochefort - Les Fleuves)
Eles encerram
uma promessa de fertilidade. O homem empregou muitas vezes o seu engenho e arte
para aproveitar os recursos que eles lhe propiciavam, como uma fonte
inesgotável. As populações ribeirinhas viram sempre nos rios um elemento que
lhes facilitou a vida de relação. Eles foram Para muitos Povos uma entidade
mítica, qual divindade que, por vezes, se tornava necessário aplacar. A enorme
quantidade de energia que são capazes de desencadear, em certas circunstâncias
adversas, pode conduzir ao descontrolo dos agentes naturais, obrigando o homem a
um permanente esforço para prevenir a catástrofe. Eles são, também, e antes de
tudo o mais, um importante agente modelador do relevo terrestre.
Um rio não é,
porém, um elemento isolado; ele faz parte de um sistema. Este é constituído
pelo conjunto das linhas de água hierarquizadas que compõem a sua rede
hidrográfica. É um sistema aberto que recebe energia fundamentalmente da
Atmosfera, gasta-a e produz mais, trabalha a Litosfera, e acaba cedendo-a ao
meio exterior. Assim, cada bacia hidrográfica deverá ser considerada como uma
unidade geomorfológica fundamental, na qual o estudo das formas tem de ser
relacionado com o substrato físico e com os processos actuantes, quer presentes,
quer passados. Todos estes aspectos têm que ser considerados de forma
integrada, quando pretendemos estudar a acção modeladora de um rio, qualquer que
ele seja.
A Bacia do
Douro, quer pela sua extensão, quer pelas diferenciações estruturais que o seu
território encerra, quer, ainda, pelas cambiantes climáticas que nos oferece,
apresenta uma certa variedade de formas, o que lhe confere grande interesse
geomorfológico. Por isso julgamos que é importante que se faça uma tentativa de
sistematização dos estudos regionais já existentes com vista à elaboração de uma
caracterização global deste unidade. No estádio, ainda inicial, do nosso
aprofundamento deste assunto, torna-se prematuro elaborar essa síntese. Para
já, e como primeiro passo, pretendemos apenas contribuir com algumas notas que
pernoitam esboçar uma visão de conjunto da geomorfologia da parte da Bacia do
Douro situada em território português.
O rio Douro
destaca-se no conjunto dos mais importantes cursos de água da Península Ibérica,
pois, não só é terceiro mais extenso (927 Km) depois de Tejo e do Ebro, como
drena a mais vasta das cinco grandes bacias hidrográficas peninsulares, com a
área de 98 370 quilómetros quadrados. Em Portugal fica apenas um troço de 330
quilómetros, dos quais 120 constituem fronteira, drenando uma área com, somente,
18 550 quilómetros quadrados.
A Bacia do
Douro constitui aproximadamente um quadrilátero, assemelhando-se a um losango
cujos vértices mais afastados correspondem à nascente, situada a 2 120 metros de
altitude junto ao pico de Urbion (2 228 m), nos Montes Ibéricos, e à foz. Os
outros dois situam-se nas cabeceiras dos rios Pisuerga e Tormes,
respectivamente, nos Montes Cantábricos, a Norte, e na Cordilheira Central, a
Sul.
Esta
extensíssima rede hidrográfica drena a mais vasta depressão interior da
Península Ibérica, cujo fundo corresponde à superfície da Meseta, com a sua
cobertura terciária. Rodeiam-na a Ocidente e a Noroeste as Serras do Minho e da
Galiza, a Norte os Montes Cantábricos, a Nordeste os Montes Ibéricos, onde nasce
o Douro, enquanto que a Cordilheira Central constitui o seu bordo meridional, o
qual depois se prolonga até à foz pelas serras da Nave, Lapa, Leomil, Montemuro
e outras elevações menores.
O rio
atravessa a bacia ao longo da sua maior dimensão, grosseiramente na direcção
Leste-Oeste, dividindo-a em duas faixas assimétricas, pois os afluentes da
margem direita, nomeadamente o Tâmega, o Tua, o Sabor, o Esla e o Pisuerga, são
bastante mais extensos que os da margem esquerda, onde se salientam o Adaja, o
Tormes, o Yeltes, o Águeda e o Côa.
O perfil
longitudinal do Douro apresenta quatro secções que se evidenciam perfeitamente
numa simples observação. A das cabeceiras, de perfil côncavo, tem cerca de 70
km de extensão, durante os quais o rio desce em regime torrencial cerca de mil
metros, o que significa uma desnível muito acentuado, na ordem dos catorze por
mil. Este troço termina nas proximidades de Sória quando o vale se abre ao
entrar na superfície de Castela a Velha.
De Sória a
Zamora o rio desliza suavemente, meandrizando com frequência, sobre as formações
terciárias com um pequeno declive, cerca de um por mil; desce dos mil aos
seiscentos metros numa extensão de 410 quilómetros.
A partir de
Zamora, o Douro começa a encaixar-se, atinge as formações paleozoicas da
superfície da Meseta, e vence rapidamente um desnível superior a 450 metros em,
apenas, 150 quilómetros. Aqui o rio corre fortemente encaixado, com perfil
longitudinal convexo e um declive da ordem dos três por mil. É interessante
salientar que o declive não é uniforme. De facto, no segmento entre Parede e
Lagoaça «o leito mergulha 125 metros
mais fundo: cerca de dez metros por quilómetro - um dos maiores declives dos
rios portugueses - só comparável aos que, nas zonas montanhosas, têm ainda
carácter torrencial bem acentuado .. »(2).
A jusante da
confluência do Huebra, um dos afluentes espanhóis do sector internacional do
Douro, o troço terminal, com uma extensão de mais de duzentos quilómetros,
apresenta um declive muito suave - 0,55 por mil. Esta regularidade não condiz
com as vertentes geralmente abruptas e muitas vezes convexas ou rectilíneas.
O percurso
actual do Douro parece não coincidir com o seu traçado histórico.
Hernandez Pacheco refere uma captura perto de Sória: «El brusco codo del
Duero en Numancia se intrepreta como una captura antigua, pues las
terrazas inferiores indicam que el rio ya segura la dirección actual
cuando sefonnaron» (3).
O autor
descreve a existência de vários níveis de terraço.
O superir prolonga-se para fora do actual traçado do vale «en una longitud de
unos 50 kilómetros e una anchura variable de 4 a 8 metros, disminyendo
con la distancia a Numancia el tamaño de los aluviones para convertir-se
en un manto de cantos pequeños e gravas en una altíplanicie de 1070 a 1080
metros de altitud, constituyendo una region plana de divisarias
indecisas, valles muertos y zonas de pantanosas (4).
Outras
inflexões acentuadas no percurso do Douro surgem-nos nos limites do troço
internacional quando, depois de Zamora, passa a correr no sentido
aproximadamente Nordeste-Sudoeste, e quando antes de em Barca de Alva retoma a
direcção Este-Oeste. Amorim Girão aventa que «pode explicar-se, talvez, esta
mudança pelo facto de o rio passar a correr sobre xistos pré-câmbricos,
de mais fácil erosão que a zona granítica situada para o Sul, por onde
parece ter tido primitivamente o seu curso, através do vale do Mondego,
que lhe fica num alinhamento bem evidente» (5). Mas isto parece não poder
ter sido assim tão simples. Não se conhecem sinais mais evidentes, ou estudos
que no-los revelem, se é que eles existem, capazes de provar inequivocamente
qual a evolução da rede de drenagem do Douro.
Se pensarmos
no passado geológico da bacia superior do Douro torna-se-nos possível preferir
uma outra hipótese que, no entanto, não exclui totalmente aquela. Toda a bacia
está talhada no Maciço Antigo Ibérico. Movimentações tectónicas muito vigorosas
teriam originado o aparecimento de uma depressão interior sem saída para o mar,
a qual se veio a transformar numa imensa área lacustre que, a partir do
Jurássico, «sest ramplie progressivement de matériaux provenent de la
destruction des reliefs de la bordure» (6). Durante quase toda a Era
Cenozoica existiram, portanto, na área da actual bacia do rio Douro, duas
entidades distintas: uma interior, endorreica, e a vertente, ou vertentes,
voltadas ao Atlântico das montanhas que formavam a bordadura ocidental daquela
depressão. Nestas terá existido um pré-Douro que se desenvolveu
progressivamente aproveitando condições favoráveis, como o basculamento que
parece ter ocorrido no Plioceno (a crer no que alguns autores defendem) e,
provavelmente, uma descida relativa do nível de base. Assim, e de acordo com a
lei da erosão regressiva, esse pré-Douro terá atingido a área lacustre interior,
abrindo-lhe uma saída para o mar e contribuindo para o seu gradual esvaziamento.
À medida que ele ia progredindo, uma nova drenagem se desenvolvia sobre os
sedimentos, agora à superfície. O Douro actual será, pois, o resultado da
organização dessa nova drenagem, a partir do pré-Douro e das redes hidrográficas
incipientes que alimentavam a anterior drenagem endorreica.
Essa planície
dos sedimentos terciários, ainda hoje bem conservada em Castela-a-Velha,
estendia-se sobre a superfície de aplanarão da Meseta, bastante mais para
ocidente no actual território português. Alguns vestígios dessa cobertura ainda
hoje se conservam para cá da fronteira. O Douro, com os seus tributários
portugueses, terá sido o grande responsável pela remoção desses sedimentos,
exumando a antiga superfície de erosão. Esta trunca formações geológicas
diversificados, que se comportam de modo diferente perante os agentes erosivos.
O Douro, dotado de uma energia ímpar, foi vencendo todos os obstáculos. Ele
corre na área de maior altitude média do Maciço Antigo e numa zona de abundante
precipitação que, por um lado, parece ter sido poupada aos máximos de aridez do
Quaternário e, por outro, ficou no limiar das grandes glaciações. A descida
geral do nível de base que ocorreu a partir do fim do Terciário também
contribuiu para lhe conferir uma elevada capacidade erosiva. Este conjunto de
circunstâncias explica o extraordinário encaixe do vale em todo o território
português. O Douro «apresenta vertentes abruptas quase até ao mar. A
escarpa da Arrábida a 2,5 quilómetros da foz apresenta um encaixe de
cerca de 70 metros, cujos bordos ficam distanciados de 500 metros. Depois
de se encaixar nesta plataforma, o Douro cortou o anticlinal silúrico de
Valongo, e estabeleceu-se no interior dos maciços do Marão (1 415 m) e do
Montemuro (1 382 m»> (7) onde «la courbe de 50 mètres pénètre le plus
profondément à 1'interieur des terras au Nord du Tage» (8). Cruzou a
linha de depressões Régua-Verin, entalhou a zona planáltica que de
Trás-os-Montes se estende até à Cordilheira Central, «descrevendo um lacete
irregular ao encontrar o compartimento abatido de uma depressão tectónica - a
fossa da Vilariça, e tenta morder o planalto de Castela-a-Velha» (7).
É este o rio
que a lenda apelida de preguiçoso. Ele que não escolheu para o seu labor
erosivo, nem as baixas superfícies de erosão da Estremadura espanhola, nem as
suaves planícies da Bacia Terciária do Tejo. Ele nem sequer pode ter acordado
tarde, dado o trabalho difícil que já realizou; tendo o litoral ocidental da
Península como ponto de partida da sua acção erosiva, ele remontou até aos
Montes Ibéricos.
Naturalmente
que recebeu ajudas, muito especialmente da tectónica, que aproveitou para vencer
alguns dos obstáculos mais difíceis. Por exemplo, «adapta-se à estrutura
quando atravessa a mancha quartzítica do flanco oriental da grande dobra de
Valongo, na base da Serra da Boneca, a favor de um importante acidente
transversal que faz inflectir fortemente para Nordeste o afloramento ordovícico»
(9). Toda bacia apresenta inúmeros sinais de movimentação tectónica, a
ponto de o curso médio do Douro já ter sido considerado «le plus beau champ
de vallées de fracture du pays» (10).
No entanto, o
rio Douro tem «uma direcção que não é comum ao caso geral da drenagem
portuguesas, pois o seu curso não se estabeleceu, «nem em função da
disposição das diferentes formações geológicas que vai atravessando
indiferentemente», nem «coincide com nenhuma das direcções de fractura típicas
do nosso país» (11). Ele adapta-se no pormenor a toda uma série de
fracturas, pequenas ou grandes. O mesmo acontece com a generalidade dos seus
afluentes. E, porém, nos pequenos cursos de água que encontramos os mais
interessantes vales de fractura como, por exemplo o do Paivô, na Bacia do Paiva,
ou a parte superior da Ribeira de Petimão, e as das ribeiras de Rio Douro, de
Cavês e de Infesta, na Bacia do Tâmega Dispensamo-nos de citar inúmeros outros
já referendados por vários autores.
A Ribeira de
Cavês apresenta dois tramos distintos que fazem entre si um ângulo recto. O
troço superior, com cerca de 15 quilómetros, surge-nos com um traçado
perfeitamente rectilíneo, no sentido Norte-Sul, paralelo ao da Ribeira de
Moimenta, a sua vizinha mais próxima. Antes de atingir o Tâmega inflete
bruscamente para Leste, num vale profundamente encaixado e de vertentes
convexas. Este sector, com apenas dois quilómetros, parece também relacionar-se
com outro alinhamento estrutural que se adivinha, até no traçado do próprio
Tâmega. Podemos observar orientações idênticas nas ribeiras de Petimão e de
Infesta, de entre outras. Estes cotovelos, tão pronunciados, podem ser o sinal
de capturas, mas o encaixe da rede não teria permitido a conservação de
quaisquer outros testemunhos que pudessem confirmar a hipótese. Parece, no
entanto, mais lógico e na linha das considerações que vimos expondo, considerar
a existência de várias direcções de fractura, entrecruzadas, a condicionar o
desenho da rede hidrográfica. Porém, isto não exclui que, simultaneamente, não
possa ter havido capturas. Até, o mais provável será a coexistência dos dois
fenómenos que, aliados à variação dos níveis de base, desenvolveram uma dinâmica
que foi responsável pela evolução da rede até ao traçado que hoje nos apresenta.
É um problema que merece uma mais ampla reflexão, para a qual muito contribuirão
alguns trabalhos que estamos desenvolvendo.
Apresentamos
alguns exemplos, confinados a uma área restrita onde os trabalhos de campo estão
mais adiantados. Muitos outros poderiam ser indicados mas parece-nos, para já,
mais importante confrontar as nossas observações com os casos já estudados
dentro da mesma Bacia do Douro. Destacamos, por exemplo, o rio Mau que está a
conquistar área à bacia do Sousa, na Serra das Banjas, de acordo com o que nos é
apresentado por Fernando Rebelo. « Com efeito, a Ribeira das Banjas, que, com
a de Lagares, vai originar a Ribeira de Santa Comba, afluente do Sousa
antes da Senhora do Salto, tinha, sem dúvida, mais cabeceiras do que tem
hoje - francamente alinhadas por fracturas transversais às cristas,
algumas delas foram capturadas por ravinas remontando a partir de uma linha de
água cuja direcção geral segue um nítido alinhamento tectónico. Terá sido
este facto o grande responsável pelas pequenas capturas em questão, Mas
não o único: o Rio Douro está muito próximo e oferece um nível de base bem mais
baixo que o Sousa na confluência da Ribeira de Stª Comba (menos de 10 metros
de cota a cerca de 6 km de distância, contra um pouco mais de 60 metros a
quase 7 km) - o
Mau está,
portanto, em condições favoráveis para continuar a ganhar terreno desde que não
se alterem os dados tectónicos» (12).
Portanto, a
rede hidrográfica do Douro ter-se-á desenvolvido de acordo com a lei geral que é
a da erosão regressiva, conquistando novos elementos, passo a passo, num
processo complexo. Este jogo que se desenvolveu e que continua a processar-se
até ao interior, relaciona-se fundamentalmente com o modo como a rede se dispõe
relativamente à estrutura. Assim, cortando indiferentemente diversas formações
geológicas, umas mais resistentes do que outras, beneficiando dos desníveis
criados por soleiras de rocha dura e das fraquezas estruturais herdadas e, ou,
actuantes, estabeleceu o traçado actual.
A instalação dos cursos de água nas fracturas principais impede,
de certo modo, o « desenvolvimento harmonioso da rede hidrográfica.
De facto, a existência de faixas de esmagamento importantes, criando
condições preferenciais de escoamento, explica a permanência de cursos de
água paralelos, correndo a curta, distância uns dos outros e apresentando
uma rede muito pouco hierarquizada. Exemplo disso é o que se verifica no
sector oriental dos planaltos centrais, onde o Tedo, o Távora, o Torto e a Teja
não apresentam, por via de regra, nenhum afluente importante. Todavia, ao nível
dos elementos mais pequenos da rede, há uma grande instabilidade do
traçado, devido, por um lado, ao padrão geométrico das fracturas e, por
outro, à facilidade da erosão regressa . vã ao longo das faixas de
esmagamentos (13).
Apesar de a
adaptação dos cursos de água ao reticulado criado pelas fracturas ser um
fenómeno quase geral, a sua identificação ou confirmação «nem sempre (...
) pode ser feita com facilidades e, muitas vezes, nem sequer
«se torna possível deduzi-las pelas orientações dos cursos de água»
(14). Por isso não podemos pensar em explicar deste modo todos os problemas que
nos são postos pelo traçado da rede. Exemplos de desacordo entre este e a
estrutura são-nos apresentados em vários trabalhos. Um dos mais interessantes é
o caso do rio Sousa que, depois de atravessar os quartzitos do fianco oriental
do anticlinal de Valongo, volta a eles ao descrever um meandro encaixado que
isola no seu interior o pequeno morro quartzftico do Castelo, em Aguiar de Sousa
(15). «Outra epigenía nítida é a do Arda ao atravessar os quartzitos
do flanco ocidental, perto da sua confluência com o Douro» (16).
Na parte
portuguesa da Bacia do Douro dominam as superfícies de aplanarão que truncam as
diversas formações geológicas do Maciço Antigo Ibérico. Também aqui o jogo da
tectónica é nítido. Por isso, torna-se difícil a individualizarão dessas
superfícies. Elas foram compartimentadas e deslocados, dando origem aos muitos
horst e às variadas fossas tectónicas. Estas funcionam, naturalmente,
como colectoras da rede hidrográfica tendo, portanto, um papel importante no seu
desenho. Algumas poderão mesmo, em fase anterior, ter constituído bacias
endorreicas. Por sua vez, a elevação de blocos ao longo de fracturas veio
acentuar os desníveis, aumentar a energia dos cursos de água e,
consequentemente, contribuir para o progressivo desmantelamento de alguns
elementos dessas superfícies. Assim, retalhadas e entalhadas, elas
apresentam-se hoje como uma sucessão de níveis, mais ou menos extensos, cuja
datagem se torna difícil.
Quanto mais
nos debruçamos sobre estes problemas, mais se nos radica a convicção de que há
ainda muito trabalho a desenvolver. A generalização dos resultados a partir dos
poucos acidentes já bem estudados tem os seus perigos. Hoje, os critérios
altimétricos estão a ser postos em causa como marcos fundamentais de uma datação
das formas, tanto para as superfícies como para os depósitos. Não podemos
esquecer, como já referimos, toda a movimentação tectónica passada e actual, nem
a própria dinâmica dos cursos de água. Eles tiveram, ao longo do Quaternário,
diversos ritmos de encaixe, quer em consequência das variações climáticas, quer
motivados por circunstâncias locais derivadas das condições específicas da
geologia de cada bacia.
Estamos hoje
um pouco mais afastados da aplicação pura e simples das ideias bauliguianas;
temos de entrar, também, em linha de conta com os problemas da tectónica e,
muito especialmente, com as novidades da neotectónica. Talvez se possa
encontrar aqui a explicação para as perplexidade sentidas há alguns anos por um
jovem estudante de Geografia, ao verificar que os níveis não acertavam com
precisão geométrica. Já então afirmava que «o estudo dos perfis
longitudinais de um rio, para deles se tirarem conclusões cíclicas, não pode
ignorar de maneira nenhuma a tectónica local (..) e a necessária
coordenação entre os dados fornecidos Por este estudo e pelo estudo dos perfis
transversais» (17). No entanto, o trabalho então realizado com a elaboração
de um perfil conjunto do Douro e dos seus mais importantes afluentes portugueses
(figura 6) mostra que, apesar de tudo, há uma certa semelhança entre os perfis
longitudinais dos diferentes rios. Parece estarem representados os grandes
ciclos quaternários, sobretudo no Douro onde as vagas remontantes atingiram já o
sector internacional. As maiores semelhanças são as que existem com os
afluentes mais importantes, nomeadamente os que desenvolvem os seus cursos ao
longo dos planaltos ou beneficiaram de possíveis facilidades tectónicas.
Noutros, sobretudo os de menor caudal e extensão, este facto não é tão nítido.
Nestes evidenciam-se melhor os factores exteriores à dinâmica fluvial.
As dificuldades avolumam-se quando pretendemos correlacionar com os
níveis que os diferentes perfis de vertente nos possam revelar. O vigor das
vertentes, muitas vezes convexas nos sectores de maior encaixe, explica o
desaparecimento de muitos dos níveis que porventura tenham existido. Mas,
também é possível que, dada a pequena largura e o forte pendor das vertentes em
muitos vales, o novo encaixe apenas tenha continuado a superfície da vertente já
existente, fazendo-a descer mais um pouco em consonância com o afundamento do
talvegue. Teríamos assim uma espécie de vertentes poligénicas. Por outro lado,
as condições morfo-elimáticas favoreceram um intenso ravinamento que ajudou a
disfarçar, ou mesmo a desmantelar muitos desses níveis. Pensamos que um estudo
sistemático de toda a área, conduzindo à elaboração de um esboço geomorfológico
de pormenor, seria o caminho mais eficiente para se conseguir equacionar toda
esta problemática. Ele permitiria enquadrar no conjunto o significado de muitas
bonitas rechãs que, até agora, apenas se podem referendar em âmbito local.
Admitimos, também, a hipótese de existirem espalhados por um tão grande
território, ainda não totalmente coberto pela cartografia geológica de grande
escala, alguns pequenos retalhos de depósitos cujo significado poderá vir ajudar
à interpretação geomorfológica.
Os depósitos
considerados fluviais que têm sido referendados situam-se, ou em algumas
depressões mais significativas, ou na área vestibular. Aqui podemos observar um
conjunto de depósitos escalonados desde os 150-170 metros até aos 5-8 metros,
que a Carta Geológica de Portugal na escala de 1:50 000 interpreta como
terraços. O seu estudo tem sido feito, desde há já muitos anos por geólogos e
geógrafos, sem que se tenha chegado a uma conclusão uniforme. As primeiras
correlações assentaram, como era óbvio, nas suas posições em altitude. Por
outro lado, a relação com um grande rio poderá ter insinuado a evidência
de se tratar de terraços fluviais do Douro. Estudos mais cuidados, como aquele
a que procedeu Fernando Rebelo (18) levam-nos a considerar para alguns deles a
hipótese de uma génese que não será exclusivamente fluvial. A partir das
características que observou, aquele autor admite a possibilidade de existir um
«depósito de sopé» em Aldeia Nova (Avintes), formado em condições
geomorfológicas as diferentes das actuais, que mais tarde o Douro «mordeu e
aplanou» e no qual provavelmente, «abandonou alguns calhaus (pelo
menos os maiores blocos) por falta de competências (19).
Também aqui,
por muito que pareça haver correlação entre terraços fluviais e os
depósitos que têm sido considerados como níveis de praia, devemos ter
cuidado com a fácil sugestão que nos vem da identidade de posições. Assim, a
sua datagem não nos parece ser tão fácil como até há pouco se considerava. De
facto, «a correlação de terraços baseada apenas em critérios
altimétricos, parte necessariamente do pressuposto da estabilidade continental.
Sendo essa estabilidade cada vez menos provável, o escalonamento dos
diferentes níveis de terraços terá que ser entendido como resultante da
interferência das oscilações eustáticas com movimentações diastróficas de
sentido e amplitude diferenciados no espaço e no tempo» (20).
Não há
dúvidas, porém, que o Douro sofreu a partir do fim do Terciário várias fases de
um progressivo e vigoroso encaixe, encaixe esse que atingiu cotas inferiores à
da sua actual foz. Prova disso são os resultados das sondagens que têm sido
feitas no leito do rio a propósito de diversas obras de engenharia. O talvegue
do Douro, no seu perfil natural ao longo do território português, apresenta um
leito de rocha em quase toda a sua extensão. Apenas a uns 63 quilómetros da foz
ele passa para um leito de sedimentos, cuja espessura vai aumentando
progressivamente. A partir dos resultados das sondagens então existentes, em
1959 foi feita uma tentativa de restituição do talvegue wurmiano.
Atendendo a que para jusante de Atães ainda não havia valores concretos da
posição do bed rock, pois as sondagens para a ponte da Arrábida haviam
sido suspensas aos 51,3 metros sem o atingir, a hipótese que pareceu mais lógica
foi a de pensar que o vale teria tido uma profundidade aproximada de mais de uma
centena de metros abaixo do actual nível. Este raciocínio baseou-se na posição
do mar atribuída ao máximo da glaciação wurmiana. Dados mais recentes levam-nos
a supor que o entalhe não será tão profundo. As sondagens efectuadas no perfil
correspondente à nova ponte ferroviária revelam-nos que aí o bed rock
está a menos de 70 metros de profundidade. A não ser que exista, mais a
jusante, qualquer ruptura significativa no talvegue do bed rock, a
espessura de sedimentos não será tão grande como então se imaginou. Somos, por
agora, de parecer que não deve ser esse o caso mais provável; as sondagens
conhecidas, efectuadas na secção terminal dos principais rios da costa
ocidental, apontam para valores de profundidade do bed rock sempre
inferiores ao então considerado.
O estudo de
uma bacia faz-se actualmente de uma forma mais integrada. «A bacia
fluvial foi considerada uma unidade geomorfológica fundamental (..) que se pode
caracterizar por parâmetros morfométricos - a extensão e a forma da bacia
(determinando a quantidade de precipitação e a insolação recebidas), o
declive (determinando a rapidez do escoamento), e a densidade de drenagem
(responsável pela eficiência do escoamentos e por isso o geomorfologo
fluvial «passou de um estudo dedutivo qualitativo, a um trabalho
quantitativo, rigoroso» (22). Temos já iniciados alguns estudos
morfométricos elementares que virão contribuir para o conhecimento do quadro
geral.
Este estudo
terá que ser completado com o dos processos actuais, naturais e, ou, antrópicos,
que são essenciais à compreensão da dinâmica de evolução das formas. Não
podemos esquecer também os processos passados que condicionam aqueles que, de
uma forma quase imperceptível, se desenrolam à nossa vista. Eles deixaram-nos
vestígios e sinais que nem sempre são de fácil explicação e compreensão. Mas
carecemos de empreender o seu estudo sistemático. Só assim poderemos chega a um
conjunto de dados suficientemente coerente para nos permitirmos interpretações
com alguma consistência, das quais se possa partir para a elaboração de uma
verdadeira síntese.
Fizemos um
percurso muito rápido por toda a problemática geomorfológica da Bacia do Douro.
Não pretendemos, porém, esconder o muito trabalho que há ainda a realizar. Este
rio preguiçoso deixou-nos uma herança que laboriosamente construiu ao
longo dos últimos milhares de anos. O estudo das formas que ajudou a modelar é
o desafio que ele lança aos geomorfólogos.
(2) Amorim Girão – Geografia de Portugal, p. 141.
(3) Hernandez Pacheco - Los Cinco Rios Principales de Espafia Y sus Terrazas,
p. 17.
(4) Hernandez
Pacheco - Obra citada, p. 16-17.
(5) Amorim
Girão - Obra citada, p. 141-142.
(6) Alain Huetz\ de Lemps - LEspagne, p. 166.
(7) Serpa
Marques - O Rio Douro, p. 11-12.
(8) Jorge
Dias - Minho, Trás-os-Montes, Haut-Douro,p. 7.
(9) Fernando
Rebelo -«Adaptações e inadaptações às cristas quartzísticas do Noroeste
Português», p. 324.
(10) Mariano
Feio e Raquel Soeiro de Brito - «Les vallées de fracture dans de modelé granito
portuguais», p. 260.
(11) Serpa
Marques - trabalho citado, p. 16-17.
(12) Fernando Rabelo – Serras de Valongo, p. 150.151.
(13) Brun
Ferreira - Planaltos e Montanhas do Norte da Beira, p. 132.
(14)
Fernando Rebelo - «Adaptações e inadaptações as cristas quartzfticas do Noroeste
Português, P. 325.
(15) Conf.
Serpa Marques e Fernando Rebelo.
(16)
Fernando Rebelo - artigo citado, P. 327.
(17) Serpa
Marques - trabalho citado, p. 60-61.
(18) Fernando
Rebelo - Serras de Valongo, p. 88 e seguintes.
(19) Fernando
Rebelo - obra citada, p. 103.
(20)Maria da
Assunção Araújo - «Acerca dos terraços do litoral das proximidades do Porto», p.
351.
(21) Serpa
Marques - trabalho citado, p. 24 a 31.
(22)Celeste
Alves Coelho - «Morfometria das bacias fluviais do Maciço Antigo: Norte de
Portugal, p. 297
NOTAS
BIBLIOGRÁFICAS
AMORIM
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